quarta-feira, 16 de abril de 2008

VIGIAR E PUNIR

©Ange Leccia, "Arrangement Stasi", 1990


(...) Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma "apropriação", mas a disposições, a manobras, a tácticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em actividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio. Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é o "privilégio" adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas — efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados. Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que "não têm"; ele investe-os, passa por eles e através deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, na sua luta contra esse poder, apoiam-se por sua vez nos pontos em que este os alcança. O que significa que essas relações aprofundam-se dentro da sociedade, que não se localizam nas relações do estado com os cidadãos ou na fronteira das classes e que não se contentam em reproduzir ao nível dos indivíduos, dos corpos, dos gestos e dos comportamentos, a forma geral da lei ou do governo; que se há continuidade (realmente elas articulam-se bem, nessa forma, de acordo com toda uma série de complexas engrenagens), não há analogia nem homologia, mas especificidade do mecanismo e de modalidade. Finalmente, não são unívocas; definem inúmeros pontos de luta, focos de instabilidade comportando cada um seus riscos de conflito, de lutas e de inversão pelo menos transitória da relação de forças. A derrubada desses "micropoderes" não obedece portanto à lei do tudo ou nada; ele não é adquirido de uma vez por todas por um novo controle dos aparelhos nem por um novo funcionamento ou uma destruição das instituições; em compensação, nenhum de seus episódios localizados pode ser inscrito na história senão pelos efeitos por ele induzidos em toda a rede em que se encontra. Seria talvez preciso renunciar também a toda uma tradição que deixa imaginar que só pode haver saber onde as relações de poder estão suspensas e que o saber só pode desenvolver-se fora das suas injunções, das suas exigências e dos seus interesses. Seria talvez preciso renunciar a crer que o poder enlouquece e que, em compensação, a renúncia ao poder é uma das condições para que se possa tornar-se sábio. Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão directamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Essas relações de "poder-saber" não devem então ser analisadas a partir de um sujeito do conhecimento que seria ou não livre em relação ao sistema do poder; mas é preciso considerar, ao contrário, que o sujeito que conhece, os objectos a conhecer e as modalidades de conhecimento são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas. Resumindo, não é a actividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento.

[Michel Foucault, in "Vigiar e Punir", 1975]